« ... (daquele) envelope não mais me recordei, até um dia em que a minha mãe me chegou com ele nas mãos e me disse que, ao arrumar umas roupas há muito em desuso, o encontrara e só então se lembrara do meu pedido para o guardar, pedido de há alguns anos, "... de antes do 25 de Abril", sublinhou.
“Ah!, é verdade!, obrigado…”. E levei-o para onde o pudesse abrir sozinho, comigo e as recordações. Não fazia ideia do que iria encontrar. Lembrei o pedido do camarada para guardar o envelope, antes de "dar o salto" adivinhado, "... não é nada de importante ou que tenha perigos..., é mais uma coisa afectiva... depois peço-to...". Entretanto, o querido camarada morrera sem que lhe tivesse devolvido o envelope que então abri!
Foi assim que me vi nas mãos com uns desenhos em pedaços de papel mal cortados, meio rasgados, mas quase todos com o traço inconfundível de Álvaro Cunhal, alguns com data. Vi-os atentamente, um a um, fizeram-me sorrir e comoveram-me, e dei por mim a perguntar-me “que faço agora a isto?”.
Aqueles desenhos originais e de enorme significado, estavam nas minhas mãos pela primeira vez, e tinha-os como se meus fossem mas não os sentia como meus. E de quem eles eram efectivamente (e afectivamente) já tinha morrido. Não me pareceu correcto ficar com os desenhos, tê-los como herança tácita… ou de usucapião!
Esperei que um encontro com o Álvaro me proporcionasse falar-lhe no assunto mas, com o tempo a passar, pareceu-me que esperar seria pouco e demasiado fortuito, ou até artificioso da minha parte. Por isso, um dia, formalmente, pedi à camarada que secretariava Álvaro Cunhal que me marcasse uma conversa pessoal (sublinhei) com ele.
A conversa foi marcada, sem qualquer dificuldade, para uns dias depois, e lá fui eu com o (para mim) famoso envelope.
Ao entrar na sala reservada na Soeiro para o encontro, no meio dos cumprimentos iniciais, o Álvaro perguntou-me se havia algum problema, qual o motivo da conversa. Com alguma tibieza no arranque contei-lhe, em pormenor, o que me levara a pedir a conversa, e passei-lhe o envelope para as mãos.
O Álvaro começou a ver os desenhos, um por um, e não escondeu a surpresa. Passou-os todos, detinha-se mais num ou noutro e tinha exclamações, de vez em quando, “ai!, o malandro…ora esta…olha!, com data e tudo...”.
Quando acabou, olhou-me com um sorriso “… ele não devia ter guardado isto; como sabes, no final das reuniões, até por cuidados conspirativos, todos os papéis como estes tinham de ser destruídos, como as beatas e o resto do lixo… mas ele quis guardá-los…”, ensaiei um tímido “ainda bem!” e o Álvaro continuou, como se não tivesse ouvido, “… e agora?, o que é que tu queres?, são teus… não queres ficar com eles?”, gaguejei “querer, quero… mas não os considerava meus sem primeiro tos mostrar e ouvir o que dizias…”, o sorriso alargou-se mais (nas duas caras…) “Então fica!… são teus… mas vê lá a quem os mostras…”.
Que texto tão lindo e que tão bem se enquadra numa homenagem a Álvaro Cunhal!!!
ResponderEliminarQue estôria bonita,camarada!E o desenho,tao lindo.Desenhar criancas,em movimento,em liberdade,revela bem o sentimento de esperanca no futuro,que caracterizava Âlvari Cunhal.
ResponderEliminarUm beijo
As 'coisas' que vamos encontrando dentro das gavetas...
ResponderEliminarAinda bem que houve a coragem dos vários camaradas envolvidos na datação, no guardar, na preservação e no mostrar dos desenhos. Este que aqui nos dás a conhecer festejará no próximo 8 de Março os seus 52 anos (contas feitas a partir da data que lá se encontra). Calculo (à minha maneira) a emoção de alguém que abre o envelope e revê o que lhe foi dado a guardar. Sobretudo porque feitos na dura clandestinidade atravessaram o fascismo e nos são dados a conhecer por Abril!
ResponderEliminarEu quero salientar a profunda honestidade do Sérgio. E formular o pedido: escreve muito, o futuro necessita de memórias tão dignas. Obrigado e um abraço.
ResponderEliminarBela memória!
ResponderEliminarTão pouco tempo depois da estrondosa fuga de Peniche... quem não veria imagens de crianças livre, brincando? Ainda que continuasse o escuro, a noite, a clandestinidade, a repressão.
A (nossa) sorte é que ele sabia como as desenhar... já no futuro! :-)