Essa Vida Preciosa, Salvemo-la
«Tão magro, de magreza impressionante, chupado a
face fina e severa, as mãos nervosas, dessas mãos que falam, mal penteado o
cabelo, um homem jovem mas fisicamente sofrido, homem de noites mal dormidas,
de pouso incerto, de responsabilidades imensas e de trabalho infatigável, eu o
vejo, sentado ao outro lado da mesa, diante de mim, falando com a sua voz um
pouco rouca, os olhos ardentes no fundo de um longo e sempre vencido cansaço, e
o vejo agora como há cinco anos passados, sua impressionante e inesquecível
imagem: Álvaro Cunhal, conhecido por Duarte, o revolucionário português. Falava
sobre Portugal, sobre que poderia falar?
Sua paixão e sua tarefa: libertar o povo
português da humilhação salazarista, libertar Portugal dessa já tão larga noite
de desgraça, de silêncios medrosos, de vozes comprimidas, de alastrada e
permanente fome do povo, de corvos clericais comendo o estômago do país, de
tristes inquisidores saídos dos cantos mal iluminados das sacristias e da
História para oprimir o povo e vendê-lo à velha cliente inglesa ou ao novo
senhor norte-americano. Sua paixão e sua tarefa: fazer de Portugal outra vez um
país independente e do povo português um povo novamente livre e farto e dono da
sua natural alegria.
Ah! Aqueles cansados olhos fundos sorriam e a voz
estrangulada de cólera se abria em doçura de palavras de amor para falar de
Portugal e do povo português. Eu compreendia que aquele homem de magreza
impressionante, de físico combalido pela dura ilegalidade perseguida, era o seu
próprio país, seu próprio povo e que, com seu cansaço, sua fadiga de anos, sua
rouca voz de velho sono, suas mãos ossudas, eles estava construindo a vida, o
dia de amanhã, o mundo novo a nascer das ruínas fatais do salazarismo.
Como era terno seu sorriso ao falar das festas populares
nas aldeias do Minho ou dos homens rudes de Trás-os-Montes! Conhecia tudo do
seu país e do seu povo, tudo o que era autêntico de Portugal, desde o
mar-oceano com a sua história portuguesa e gloriosa até as vinhas ao sol e as
cantigas e os poemas dos poetas reduzidos na sua grandeza pela censura
fascista; desde as histórias heróicas dos militantes presos, torturados até à
loucura e à morte, as tenebrosas histórias do Tarrafal, o campo de concentração
mais antigo e mais cruel da Europa, até às doces histórias de amor da província
portuguesa, com um sabor romântico das velhas legendas.
Contou-me coisas de espantar com sua voz ora
doce, grávida de ternura, ora violenta de cólera desatada quando falava da fome
dos trabalhadores, da opressão salazarista sobre o povo, da opressão
imperialista sobre a sua pátria de primavera e mar. (...) os comunistas
portugueses, heróis anónimos do povo, os invencíveis, os que estão rasgando a
noite fascista com a lâmina de sua audácia e de sua certeza para que novamente
o sol da liberdade ilumine o país dos pescadores e das uvas. De um me disse: «Esse
esteve no Brasil e aprendeu com vocês» (...) Falou do campo, dos homens que
habitam as montanhas, daqueles que Ferreira de Castro, o grande romancista,
descreveu em «Terra Fria» e «A Lã e a Neve». (...) Falou dos
operários das cidades daqueles que Alves Redol descreveu em seus magníficos
romances e contou da sua irredutível resistência ao regime salazarista. (...)
Naquela tarde como que me apossei por inteiro de Portugal, do melhor Portugal,
do Portugal eterno, como se Álvaro Cunhal o trouxesse nas suas mãos ossudas,
tão descarnadas e nervosas, como se trouxesse – e o trazia em verdade – no seu
coração de revolucionário e patriota.
Voltei a vê-lo ainda uma vez, dias depois, e a longa
conversa sobre Portugal continuou. Falou-me dos escritores, dos plásticos, dos
pescadores, fadistas, e sobretudo da luta subterrânea, dura e difícil e jamais
vencida. (...) Veio o processo, dentro dos métodos infames dos tribunais
fascistas. Ali se ergueu Álvaro Cunhal (Militão morrera de torturas) e não era
o réu, era o acusador, a voz de fogo a queimar o vergonhoso rosto dos carrascos
do seu povo, dos vendilhões da sua pátria. (...) Pretendem matá-lo e nós
sabemos que são frios assassinos os que querem matá-lo. É uma vida preciosa,
preciosa para Portugal e para o mundo, ajudemos o povo português a salvá-la!
(...) Há alguns meses eu estava em frente ao mar Pacífico, na costa sul do
Chile, em Isla Negra, em casa de Pablo Neruda, meu companheiro de lutas de
esperança. Uma figura de proa de barco se elevava em frente ao mar de ondas
altas e violentas. Por isso falámos de Portugal e do seu destino marítimo.
Contei ao poeta sobre Cunhal, e Pablo levantou-se, deixou-me com o pescador que
parara para escutar-nos e quando voltou havia escrito esse maravilhoso poema
que é «A Lâmpada Marinha»* sobre Portugal, seu povo, Álvaro
Cunhal e o dia luminoso de amanhã (...) Hoje o mais bravo dos filhos desse povo
heróico, aquele que tudo sacrificou para ser fiel à esperança do povo está com
sua vida ameaçada.»
Texto para a campanha internacional para a libertação de
Álvaro Cunhal, 1954.
* - será inserido em próxima mensagem
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