Começo por vos pedir desculpa pelo atrevimento.
Aceitar o convite para vos falar de Álvaro Cunhal e a sua criação artística, ou seja das suas reflexões sobre arte, dos seus desenhos e da sua pintura, é uma tarefa que me excede. Com consciência das dificuldades, também vos peço que compreendam como era difícil escusar-me ao prazer, à alegria que esta pequena conversa me exigia. Voltar a aproximar-me dos seus textos, das memórias que o tempo foi guardando, de conversas rápidas que deixaram registo, constitui uma obrigação a gosto. É de algum modo evocá-lo, sentir-me vaidosamente como colega de ofício deste homem tão exigente consigo e tão simples, que marcou e que continuará marcando o tempo português como activo e influente protagonista.
São inúmeros os testemunhos de reconhecida admiração dos que com ele privaram ou daqueles a quem aconteceu um contacto de acaso, ou daqueles que partilhavam as ideias, as formas de luta, dos camaradas de Partido, ou mesmo dos adversários que lhe reconheciam a inteligência, a cultura e a invulgar coragem... Todas as memórias se registam em grandes e pequenos acontecimentos da vida, mas a mesma matriz de camaradagem solidária, ampla, sensível, determinada, confiante e impulsionadora. . . era constante em Álvaro Cunhal.
Acompanhei-o por duas vezes na apresentação do seu livro «A arte, o artista e a sociedade», em Santiago do Cacém e em Almada. Era comovente ver o seu entusiasmo quando propunha à plateia que ouvisse um pequeno trecho gravado. Uma voz feminina, cantando, elevava-se como uma lâmina aguda ganhando o silêncio da sala, numa breve melodia de rara beleza pela extensão e pela qualidade e timbre da voz. Depois perguntava, deixando um certo tempo para que a voz continuasse a ressoar no mais intimo do nosso coração. Sabem o que ouviram? Perguntava e respondia, não é uma diva em S. Carlos, é uma camponesa de Trás-os-Montes num canto de trabalho.
Esta comparação estimulante permitia o enlace do erudito e do popular, agarrava as forças criadoras do homem, exaltava a dignidade e explicava a capacidade de podermos ser simultaneamente intérpretes e espectadores da vida e permitia entender uma dimensão alargada da arte como força permanente indispensável e renovadora.
A procura de encontrar formas de transmitir o sentido do «belo» no seu valor intrínseco, constituindo um valor estético em si mesmo, era para Álvaro Cunhal uma linha, um forte motivo de reflexão. Considerava a obra de arte aberta à complexidade dos nossos sentimentos e motivações.
«O artista é um criador e o belo é em si mesmo um valor estético». Esta é uma afirmação simples, luminosa e bastante clara.
São inúmeros os exemplos dados nos seus textos que permitem afirmá-lo.
Por exemplo, comentando um quadro de EL Greco, «Uma vista de Toledo», onde o céu se abate dramático e anunciador duma violenta tempestade em azuis quase negros e cinzentos, comenta: «não nos transmite apenas a violência de uma tempestade natural, mas o pesadelo da inquisição». E acrescenta, «o significado social não precisa de ser explicitado para ser suficientemente expressivo».
Este «mover» entre o conteúdo e a forma, entre as vontades e os sonhos, entre o compromisso e a luta social expressas na arte, ao longo da sua história, continuando-se como questão central hoje, é também uma linha de reflexão que desde a sua juventude Álvaro Cunhal debate, analisa, discute.
Em 1939 (ano em que faz um desenho para a capa da primeira edição dos «Esteiros» de Soeiro Pereira Gomes ), numa polémica na Seara Nova em que se envolve com José Régio, autor da «Encruzilhada de Deus», e que Álvaro Cunhal intitulou «Numa Encruzilhada dos Homens» e depois, «Ainda na encruzilhada», o que estava em causa era fundamentalmente a relação da arte com a vida.
Para os «presencistas» a arte era um fim em si mesmo, a mais pura e sublime. Ela deveria ser a revelação íntima do seu autor, dos seus problemas, das suas cogitações, num universo pessoal e livre de problemas, das questões sociais ou outras que marcavam o tempo a acontecer como coisa exterior e fora do seu ambiente ou da motivação criativa.
Contrariava Álvaro Cunhal com toda a força da sua argumentação, que não estava «em causa o valor poético mas a atitude social, que através da poesia cantava e comunicava». O isolamento do poeta na sua torre de marfim, como então se dizia, e que não apoucava a arte, antes lhe dava novas e renovadas dimensões se à sua qualidade acrescentasse a participação e utilidade no quadro de vida que então se vivia. Não é necessário recordá-lo, os anos 40 são anos dramáticos, são invadidos pelo fascismo alemão lançado na guerra que incendiará a Europa, pela Espanha saída duma guerra civil, onde o fascismo de Franco impôs a lei da morte, pela Itália de Mussolini, pela nossa repressão interna, onde o polvo fascista alargava violentamente a sua acção repressiva.
É, no entanto, necessário deixar uma nota. Cunhal nesta polémica e mais tarde no livro das suas reflexões sobre a problemática artística, ressalva a importância do movimento da «Presença» na sua rotura com o passado academizante e contra a mediocridade existente na literatura portuguesa de então. Refere alguns autores com particular carinho o que sublinha o seu grande respeito, a sua argúcia e o natural envolvimento activo, critico, participante no mundo intelectual.
Entre outras, estas, julgo terem sido linhas mestras que motivaram a Álvaro Cunhal longas e debatidas reflexões sobre o exercício, o pensamento e a prática da arte, quer interrogando a sua função, a sua utilidade efectiva no plano global do indivíduo, a sua luta solidária, quer como elemento participante na modificação da sociedade movida por ideais de fraternidade, de justiça social e de liberdade.
Houve um sentimento profundo que atravessou o homem, um pouco por todo o mundo, um sentimento pleno e sensível onde se reflectiram e convergiram duma forma idêntica os desejos, os sonhos, as lutas, que de todos os continentes se anunciavam numa vontade que conquistou o canto e a voz de milhares e milhares de homens numa determinação de ganhar a paz necessária ao refazer do mundo.
É neste quadro que nasce, ou o que se encontrou como resposta a estas premissas um movimento denominado neo-realismo, que como o disse Álvaro Cunhal «está indissoluvelmente ligado à luta pela liberdade e à democracia, contra a ditadura fascista em Portugal.»
Dos poetas do «Novo Cancioneiro» dos quais dizia João Gaspar Simões, «é o facto de esses poetas terem decidido que a poesia deveria ser utilizada para determinados fins», motivo que os isola e caracteriza diferentemente dos da Presença para quem a poesia era uma actividade em si mesma.
Mas o movimento começa a conhecer os primeiros livros como o novo e importante romance «Gaibéus» de Alves Redol, e avança com uma vitalidade extraordinária que se estende à poesia, à música, ao teatro, ao cinema, às artes plásticas, a todas as actividades criadoras, tendo como vector comum não apenas o autor e o esforço pela qualidade do seu trabalho, como, e cito, «partir de uma visão da sociedade em que o interesse social e humano do artista o conduzia a tomar como objecto da criatividade não o seu eu, antes as classes trabalhadoras, nomeadamente o operariado, os camponeses, os pescadores».
O neo-realismo foi nestes anos o motor, o que deu a motivação, a unidade, a energia, e teve uma participação muito activa na vida do País, dando uma luta sem tréguas à censura, à pide, ao regime. Conta Álvaro Cunhal que um crítico do Diário de Noticias preocupado com o insucesso da literatura «oficial», comentava «entre nós é preciso dizer mal dos ricos para agradar aos leitores».
O que ressalta hoje, quando a memória ou estudos que começam de novo a surgir, ou um simples olhar sobre o quadro dos acontecimentos, era a forte solidariedade política. Os presos políticos enchiam as prisões por todo o mundo. Uma repressão sem lei varria de igual modo o mais pequeno sinal de indignação, o mínimo sinal de luta, odiava a inteligência, desprezava o conhecimento, queria calar o mais sussurrado grito pela liberdade
Mas não conseguiam...
Escritores, poetas, operários, camponeses, estudantes, homens e mulheres, como uma imensa mola disparavam para o futuro, mau grado as condições da repressão arbitrária, mau grado a censura, a violência, e a miséria. É neste barco que viaja uma grande e incontida esperança que os poetas cantam, que os músicos como que a anunciam, que os escritores denunciando-a abrem ao mundo, que os pintores descobrem uma outra natureza em si próprios... que uma grande onda de solidariedade invade o mundo.
Mas Álvaro Cunhal, para além das polémicas que marcaram de forma inquestionável o mundo intelectual de então, e que continuam como questão central no campo das ideias sobre a problemática artística, desenhava, escrevia, pintava. Creio que procurava por uma necessidade interior, quase vital, pela forma encantada com que se envolvia em conversas sobre estes temas, traduzir a sua forma de encarar a prática artística, participando, ensaiando, descobrindo pelos meios de que dispunha os caminhos do seu trabalho.
E aqui será necessário, mesmo sabendo que certamente o sabem, referir as condições em que os «Desenhos da Prisão» são realizados, e nada mais claro do que citar a nota anexa à edição de 1975: «Desenhos da Prisão» foram executados de 1951 a 1959, nas cadeias da penitenciária de Lisboa, onde Álvaro Cunhal passou sete anos de rigoroso isolamento, e do Forte de Peniche, de onde se evadiu em 3 de Janeiro de 1960. A sua publicação, pelas Edições Avante! em Dezembro de 1975, enquadra-se nas iniciativas de recolha de fundos para o Partido Comunista Português.
Estamos a falar dum conjunto de desenhos, não realizados em atelier, como uma sequência normal de trabalho numa perspectiva de desenvolvimento, mas dum homem a quem foi retirada a liberdade, numa prolongada prisão em condições inenarráveis, que quis encontrar, procurando no mais profundo da sua vontade, a capacidade de, na folha, como uma bandeira branca aberta na cela, implicar o lápis a abrir janelas sobre realidades vividas, inventadas, recriando-as com grande carinho e ternura.
É necessário olhar os desenhos neste contexto e adivinhar a multiplicidade de solicitações a que Álvaro Cunhal teria certamente que responder.
E ao olhá-los que sentimentos, que valores eles reflectem na simplicidade das linhas que os contornam, da tonalidade de claro escuro, da sombra que os invade para sublinhar a densidade e fazer ressaltar com mais evidência um rosto, um perfil, um plano, nas multidões que se deslocam ou brincam, ou fantasiam jogos, o que sentimos é um fazer lento, uma demora que procura a exigência, não o traço rápido corrido, espontâneo, mas a tentativa duma conquista global, serena e intensa. As figuras isoladas que nos olham, estão duma forma singular, diferentes de outros desenhos, estáticas, como se eternas numa expressão de dádiva, duma ternura firme, parecem em diálogo com o autor. Tão eloquentes como a camponesa do canto em Trás-os-Montes.
É durante estes anos que escreve «Até Amanhã, Camaradas» que leva como um tesouro quando da fuga de Peniche, e ocorre-me de quão grande é o valor que o próprio autor atribui ao seu manuscrito ganhando foros de coisa essencial, como Camões salva os Lusíadas do mar, importa ressaltar a consciência da importância dum trabalho irrepetível que o próprio autor já lhe reconhece. E felizmente agora todos o podemos reconhecer como um ícone da nossa literatura, como peça essencial para a compreensão duma luta, mas revelando pela solidez das histórias, pelo fundo humano, pelo conhecimento sensível e profundo da realidade narrada, pela movimentação dos conflitos, pela diversidade da natureza humana, que dá aos seus livros uma qualidade literária, um calor e uma humanidade rara.
De regresso a Lisboa, depois da apresentação em Berlim da exposição comemorativa dos 60 anos do Partido (naturalmente na RDA), por amabilidade, Sérgio Vilarigues deu-me o lugar ao lado de Álvaro Cunhal, dizendo: «aproveitem para falar de pintura que eu tenho sono». E foi o que aconteceu. Dessa magnífica conversa de quatro horas, queria ressaltar, pela forma tão empenhada e comovente, como o fez, o comentário ao quadro de Rembrandt «O regresso do filho pródigo» que no essencial se encontra no livro sobre Arte, e por isso o citaria : «. . . é uma obra notável,... mas o mais exaltante é o valor estético da mensagem humanista... do que conheceu a solidão e o abandono que tem naqueles pés nus superiormente pintados a marca dessa longa caminhada, dessa longa experiência e que regressa, carente de protecção, de carinho e de amor.»
A pintura de Cunhal, procura a representação do drama, das margens entre o sofrimento e o amor tal como ele a descreve na apreciação de outras obras como por exemplo a de Rembrandt. Creio que é inevitável, quando um pintor olha um quadro e fala dele, fala sempre também um pouco de si próprio.
E uma última nota que toca os problemas com que arte se debate hoje, e que no seu livro Álvaro Cunhal se lhes refere com particular sensibilidade.
«Pouco conseguida é uma obra de arte que só com a explicação acaba por ser reconhecida como tal» e ainda «mais importante do que aquilo que o artista quis fazer é aquilo que realmente fez».
Para quem acompanhe a crítica, nos jornais, nas revistas, na rádio ou na televisão, mesmo escassa como é, certamente encontra sentido nestas observações pertinentes de Álvaro Cunhal.
Nunca se assistiu da parte dos artistas a uma tão cabal explicação das motivações, do momento inspirador, da infância que sempre houve, das razões directas ou indirectas, do que quis dizer mas que conseguiu evitar, como nos últimos anos em que os poleiros estão cheios de boas razões e boas casas para se sentirem afirmados.
Ou muito me engano ou estamos perante outra «Encruzilhada dos homens» que foi motivo da polémica entre Cunhal e Régio.
E terminava citando Álvaro Cunhal, cujo pensamento felizmente se encontra mais que escrito, registado em inúmeras publicações, dando-nos a possibilidade de rever e encontrar neste saber de experiência que praticou, motivações e estímulos seguros para continuar a procura do belo e do sentido da arte no mundo do homem.
E a citação é sobre Picasso:
«Picasso é um caso extraordinário de insatisfação e de busca incessante, de rebeldia e revolta, de destruição e superação autofágica, de instabilidade, de negação do que está para trás, da necessidade do novo e do inesperado.»
Obrigado.
1930-2008
Que texto tão lindo!! Que bem retrata a arte(pintura) de Álvaro Cunhal.
ResponderEliminarE, com um pouquinho de vaidade, quero dizer que, no visor do meu telemóvel, tenho uma imagem obtida através da fotografia de uma serigrafia de Rogério Ribeiro que também possuo.
Palavras poéticas, reluzentes, de Rogério Ribeiro sobre Álvaro Cunhal: de um artista para outro, com um verdadeiro sentido do belo.
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