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Edição Nº2069 - 25-7-2013
Maria Eugénia Cunhal
Unidos também no ideal
Álvaro Cunhal tem 14 anos quando nasce sua irmã Maria Eugénia. Até ao final da vida foram anos de uma intensa relação, pródiga em afectos. Esse é um traço forte que perpassa a entrevista que Maria Eugénia Cunhal nos concedeu, ao falar do irmão nos seus anos de juventude.
Afável, recebe-nos em sua casa. A conversa
flui. A memória recua e organiza o
pensamento.
Nascido em Coimbra, é em Seia que Álvaro Cunhal
passa grande parte da infância. Desses anos pouco se
conhece...
Não falávamos muito desse período. Lembro-me apenas,
por me contar, das breves brincadeiras fora de casa, pelo campo, com outros
miúdos.
A Maria Eugénia nasce em Lisboa (1927), tinha
Álvaro Cunhal 14 anos. Como era a relação entre os
dois?
Lembro-me de o Álvaro chegar a casa, pegar-me na mão e
dizer: «vamos dar uma voltinha». Dávamos uma volta ao quarteirão e eu achava
aquilo um passeio fantástico… Era muito pequenina. Morámos em vários lados, em
Benfica, na Av. 5 de Outubro e mais tarde na Miguel Bombarda.
Falamos de uma relação de grande
proximidade...
Sim, grande, muito grande. Fomos sempre muito próximos.
Um afecto muito forte entre os dois, toda a vida.
Havia cumplicidade, claro
…
Sim, chamava-me a atenção para as coisas, ensinou-me
muito, pelas pequenas coisas, a fazer-me reparar. Por exemplo, vivíamos numa
casa com porteira, que tinha um filho. Ele disse-me: «Vê lá este menino chama-se
Hélio. Sabes o que quer dizer? Sol. E vive numa casa tão triste que nem tem
janelas». Com isso fazia-me ver o mundo para além daquilo que estava à vista,
ter atenção às pessoas desfavorecidas, que tinham
dificuldades.
E passavam muito tempo
juntos?
Quando estava em casa passava muito tempo comigo. Era
capaz de chegar a casa e dizer: «anda vamos fazer o lanche para mim e para
ti».
E os seus interesses no
dia-a-dia?
Lia muito, interessava-se por arte, falava de arte.
Levava-me a uma exposição ou outra. Gostava de ouvir música. Também fazia
desporto. E desenhou desde muito pequeno, muito bem. Ainda tenho desenhos dele,
com nove, dez, onze anos... Desenhos muito bonitos!
E escrever?
Lembro coisas que escreveu quando estava preso e me
ofereceu quando eu fiz anos. Há uma história que escreveu para mim e que também
ilustrou.
E amigos, tinha
muitos?
Era muito pequena…Não sou capaz de dizer com segurança.
Sei que iam lá a casa, se eram muitos ou poucos não sei.
Há assim algum momento mais marcante que
guardes desse tempo?
Houve tantos… Ele era uma pessoa bem disposta e alegre.
Lembro-me de dizer uma vez, era eu muito novita, talvez dez anos: «Se um dia,
quando acordares, não estiver aqui a minha gabardina ou sobretudo, já sabes que
eu fui preso. E então tens de dar muito carinho aos pais, que eles vão ficar
muito tristes». E realmente um dia acordei e não estava lá. Fui ao quarto dele e
pensei: então a PIDE vem cá; e agarrei numa data de coisas que me pareceram
importantes (se calhar não eram nada…) e pus atrás dos quadros pendurados na
parede. Passado um bocadinho estava lá a PIDE, realmente. Aqueles papéis não
apanhou e entre eles estava material para a sua tese sobre o
Aborto.
É provavelmente ainda antes do ingresso na
Faculdade que consolida a sua opção revolucionária. Quem o terá eventualmente
influenciado?
Foi essencialmente por via do pai. Era uma casa
burguesa, a nossa, mas a relação dele com o pessoal era bem diferente, não tinha
preconceitos, de facto. Tratava as pessoas de forma igual, como falaria com
qualquer pessoa, digamos, da classe burguesa. Nisso já se via o Álvaro… E
lembro-me de ele chamar a minha atenção para isso.
Em 1931 (tem Maria Eugénia 4 anos), AC ingressa
na Faculdade, inicia actividade política e filia-se no PCP. Como reagiu a
família?
O
pai apoiou sempre. A mãe sempre com muito receio de que ele fosse preso. Já
tinha perdido dois filhos, de maneira que tinha muito medo sobre o que podia
acontecer ao Álvaro. E não conseguia suplantar isso por ver a vida dele e as
suas escolhas de uma maneira mais estritamente pessoal.
Feita a opção, foi a entrega à
luta...
A
luta fazia parte da sua maneira de estar na vida, de estar com os outros, da
preocupação com os outros, com o bem-estar dos outros, com a dignidade da pessoa
humana. Era isso que o fazia estar na luta. Não era uma coisa que entrasse só
pela cabeça. Entrava também por aqui [e aponta ao coração], o amor aos outros, o
interesse pelo ser humano, contra a exploração, contra a
desigualdade.
E a passagem à clandestinidade, como foi
recebida essa opção?
Com preocupação. Mas lembro-me de o meu pai, desde
miúda, explicar-me o porquê das escolhas do Álvaro. Isto porque eu tinha muita
pena de ele não estar sempre em casa, de não estar sempre connosco. E de o meu
pai explicar, de maneira a que pudesse perceber, por que é que aquela era a
escolha dele. E eu entendia.
Lembras-te da primeira prisão
dele?
Lembro-me de ir ao Aljube. Parece que ainda tenho o
cheiro do Aljube. E lembro-me de ver roupa do Álvaro com sangue, com sangue, que
não era brinquedo, eu ficar a olhar para a roupa – “mas aquilo…” – e a minha mãe
dizer: “não te preocupes, isso são uns bichos que lhe
morderam…”
Tempos de violenta repressão
policial...
Tinha eu acabado de fazer 18 anos – foi em Janeiro –, a
PIDE apareceu lá em casa às três da manhã, que gostava de aparecer assim a altas
horas. Ia prender o meu pai, que tinha lá o Avante!.
Estiveram lá três pides, três dias e três noites, em
casa. A minha mãe disse logo que a gente não se deitava: «nós vamos para a sala,
não vamos para o quarto». Ficámos ali com eles. E depois quiseram levar-me a mim
para saber coisas do Álvaro.
Em que altura da tua vida abraças o ideal
comunista?
É
difícil dizer. Porque, no fundo, acho que sempre fui comunista, desde que tenho
cabeça para pensar. Mas muito cedo, a minha opção foi tomada muito cedo, sem
dúvida nenhuma.
Como é ser irmã do histórico dirigente do
PCP?
Tenho um grande orgulho em ser irmã do Álvaro. Mas
gosto que as pessoas me vejam, a mim, não que sou isto ou aquilo por ser irmã
dele.
Mas acho que o Álvaro teve uma grande influência,
directa, com a minha escolha ideológica. Quando nos falam da preocupação com os
outros seres humanos e com a maneira como muitos são explorados e vivem mal,
quando nos chamam a atenção para as crianças que não vão à escola e, à medida
que se vai crescendo, para outras coisas mais alargadas, como as classes
sociais, no fim, pensa-se: há-de haver um tipo de sociedade em que as pessoas
não vivam assim. E depois chega-se à conclusão que a sociedade socialista,
comunista é a escolha certa.
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