«crónica extraida da Gazeta de Felgueiras»
Por: Miguel
Esteves Cardoso
NUNCA RECEBI – até hoje – um telefonema de um politico. Gostaria de dizer que
é por não atendê-los mas
a verdade é que, passados tantos anos de gesticulação selvagem à minha secretária para lhes dizer que fui levado de urgência para uma clínica de Banquecoque, eles já nem telefonam. Nenhum. Um descanso. Até hoje. Mas hoje fui finalmente
recompensado por esta obsessiva independência, que tantos problemas não me tem
trazido, de modo nenhum. Porque recebi um telefonema do único político com quem gostei
alguma vez de falar; do mais admirável intelectual e lutador político do nosso tempo:
Álvaro Cunhal.
Tinha-lhe
mandado um cartão a dar-lhe os parabéns e a dizer-lhe
o quanto – e as quantas – pessoas como eu pensavam nele. Foi a única vez que escrevi a um
político. E ele, apesar de estar em convalescença e arredado das miudezas do mundo, respondeu.
Telefonou-me!
O
Álvaro Cunhal!
Lembro-me
de mim! Falou comigo! Muito tempo! Sobre coisas interessantíssimas! Senti-me para aí
com nove anos! Uma autêntica menina! Que histeria! Mas juro-vos que é com
verdadeira alegria que verifico ter esgotado, num só
parágrafo, todos os pontos de exclamação que me estavam guardados nesta vida!
Já
não preciso mais deles.
Mal
pousei o auscultador, os meus colegas cercaram-me, perguntando se tinha dito muita coisa, se estava “lúcido”, se a voz
tinha a mesma força de antigamente. Respondi-lhes que
sim a tudo – e de que maneira!
Estavam
tão preocupados e excitados – e, pela maneira aliviada como reagiram,
gostavam tanto dele – como eu.
Disseram-me que era raro alguém falar com ele. Pediram-me todos os pormenores e mais algum. Eu dei-lhos. Eles ficaram contentes com cada um. E eu logo percebi, diante a felicidade deles ao conhecê-los, que
tinha de partilhá-los também com os nossos leitores.
Falámos
da nova geração de marxistas nos seminários de filosofia política de Oxford. Na simpatiquíssima biografia de Marx que há pouco publicou Francis Wheen. E embora ele
tivesse recusado o meu convite para escrever para o Independente – a utopia, de facto, não
existe! - mostrou-se curioso e interessado em
receber os recortes que
fazemos das principais revistas académicas e jornalísticas dos EUA e do Reino Unido que têm um pendor político radical e uma inspiração mais ou menos claramente marxista.
Quando lhe disse que, da última vez que estive em Oxford (no seminário de Gerry Cohen no colégio de All Sousl) fiquei com a impressão que vinha aí uma leva nova de filósofos marxistas. Cunhal ainda ficou mais bem-disposto do que já estava, comentando com
o lendário humor que não o larga por mais nada: “Ainda bem, ainda bem! É uma boa notícia que me dá! E, para mais, vinda de O Independente…” perante o meu audível sorriso, logo acrescentou, impiedoso: “Tem sempre mais força, não é?”.
Álvaro Cunhal é um intelectual, um comunista e um patriota – se é que estas três qualidades são separáveis numa pessoa que tão concretamente e
visivelmente as uniu, nele e naqueles com quem lutou, em proveito concreto e visível dos
portugueses e do Portugal sem voz, sem dinheiro e sem força.
É por
isso que é um homem tão perigoso – tem a solidez e a clareza convicta de propósitos e de programas que
convencem. Passam-se duas horas com ele e sai-se bastante mais marxista do que se entrou. E não
é pelo exemplo pessoal que dá. É pelos argumentos que apresenta e a maneira generosa – e democrática – como nos inclui neles. Mesmo os burgueses e conservadores impertinentes como eu. Ou sobretudo. Se há em Portugal uma pessoa
mais humana e intelectualmente convincente do que Álvaro Cunhal ainda bem que não a conheço.
Lembro-me
de um “Expresso” em que a grande notícia da primeira página tinha o título: “Álvaro Cunhal e MEC fazem acordo eleitoral”. Era totalmente falsa, mas nunca li palavras que me envaidecessem tanto. É um homem que dá a vida,
diariamente, pelos portugueses que
só têm a vida para dar. Chega ao ponto de ter tempo para telefonar ao director do O Independente para lembrá-lo da batalha que deveria ser comum a todos os homens e todas as mulheres de boa vontade e inteligência justa.
E
baralhar-lhe as ideias todas, como se vê. Odeio a mania, felizmente já em declínio, de Cunhal como grande senhor, modelo de integridade, homem de cabeça e de mão cheia. Isso são tretas de tias, chás-de-tílias de patroas aliviadas pelo silêncio reivindicativo das criadas. Isso é que era bom, minhas comadrinhas…
Eu
sei. Falei ainda há bocado com ele. Cunhal
continua a ser o que sempre foi – um revolucionário, um comunista, um lutador generoso e incansável. E fresco como as alfaces, raios o partam!
Continua a ser um homem perigoso para a nossa preguiça instalada,
conformada, prepotente, burguesa e – acima de tudo – injusta. Com um simples telefonema encheu-me
de admiração e de terror. Porque o medo é a única homenagem que a burguesia pode prestar a um tão genuíno subversivo da ordem que nos traz de camisola de
“cashmere” ao ombro e “Wall Street Jornal” na mão.
É um homem dedicado
aos outros. Deu aos outros o que tinha. Se a mim, apenas numa entrevista e num telefonema, me deu tanta razão para repensar e ânimo para perseguir até ao fim as minhas convicções, imagine-se
o que não dá aos camaradas do Partido Comunista Português que lutam com ele.
Um dia há-de morrer. Mas será um acontecimento de somenos. Ele já deu, ao PCP
e a Portugal, tudo o que tinha a dar: a vida, o espírito, a maneira inteligente de combater e de desejar pelos outros.
Estamos tramados. O homem não só nunca mais se nos morre como está por aí a nascer e a lutar por toda a gente e por toda a parte.
Eu próprio tentarei – mas só para a semana – voltar à
normalidade.
MEC
In “O Independente”
O "MEC", de vez em quando, tem destas! :-) :-)
ResponderEliminarAmanhã edito isto!
ResponderEliminar"Visto" de fora tem impacto diferente do que dito pela nossa gente...
(é preciso colocar os outros a falar de nós)