O Álvaro Cunhal que poucos conhecem
No dia em que o líder histórico do PCP completaria 100
anos, Catarina Pires, jornalista da Notícias Magazine e autora do livro
Cinco Conversas com Álvaro Cunhal, traça um retrato do homem com quem
privou nos últimos oito anos da vida deste.
Não queria
biografias, abominava
endeusamentos, recusava o culto da personalidade. Sempre foi mal interpretada a
sua vontade de manter privada a parte da vida que o era. Não o fazia para
adensar mistérios, criar auras ou espalhar charme, mas por uma ética que lhe
era intrínseca. Via-se como um homem simples, igual a todos os outros, cuja
vida pessoal não deveria interessar a ninguém a não ser a si próprio e aos que
lhe eram íntimos. Com estes não tinha reservas. Falava sobre tudo. Queria saber
tudo.
Deve ser por
isso que o meu Álvaro Cunhal é diferente daquele sobre quem por vezes leio em
livros, grandes reportagens ou artigos de opinião. Deve ser por isso que a
primeira vez que o reencontrei num escrito foi numa entrevista que a filha, Ana
Cunhal, deu, em 2010, ao jornalista Nuno Tiago Pinto, na revista Sábado. Estava
lá o Álvaro que conheci: afetuoso, atencioso, generoso, paciente, indulgente,
com um enorme sentido de humor. O Álvaro que, aos 84 anos, encontrou espaço na
sua vida para mais uma pessoa, uma miúda de 24 anos, com quem gostava de
conversar, perceber que mundo era o dela, como o via e porque o via assim.
É por esse
Álvaro que escrevo este texto. Esse Álvaro que podia ter sido o que quisesse –
e foi escritor, artista plástico, ensaísta, teórico, tradutor –, mas que aos 17
anos decidiu que o queria era juntar-se ao Partido Comunista Português e lutar
por um projeto de sociedade que considerava ser o mais justo para o seu país.
Por causa dessa luta sofreu prisões, torturas, a vida clandestina, longe
daqueles a quem amava, a mãe, o pai, a irmã, a avó e mais tarde a filha. «O
homem é ele próprio e as suas circunstâncias» dizia Ortega y Gasset. Álvaro
Cunhal, que dedicou a vida a dar um novo sentido a esta frase, lutando para que
todos tivessem circunstâncias que lhes permitissem ser aquilo que quisessem,
contrariou-a. Escolheu o caminho mais difícil. O único possível. Nunca se
arrependeu. E foi feliz.
Ainda
consigo ouvir a voz incrédula da minha mãe, há 16 anos, com o auscultador do telefone a
tremer-lhe na mão: «Catarina, é o Dr. Álvaro Cunhal. Quer falar contigo.» E
depois a voz dele, bem humorada: «Sabes quem fala?». Era junho de 1997, creio,
e a razão do telefonema era saber como estava e que nota tinha tido no trabalho
que fiz sobre ele para a faculdade. Que o 17 podia ter sido melhor. Que
continuasse a fazer coisas bonitas. «Até um dia destes.»
Uns meses
antes, então estudante de Ciências da Comunicação da Faculdade de Ciências
Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, tinha pedido um encontro com
ele. Queria a sua colaboração para o tal trabalho, que era sobre ele e a sua
incursão pelas artes plásticas. Não o conhecia, a não ser da televisão e dos
jornais e das histórias que o meu pai contava. O meu pai era, e é, militante do
PCP. Não sei se isso teve importância na apreciação do meu pedido, mas este foi
atendido. No dia e hora marcados, lá estava eu, na sede do PCP, na Soeiro
Pereira Gomes. Encaminhada para uma das salas de reuniões do piso térreo,
tremia. Também não sou de endeusamentos, mas estava prestes a conhecer um
herói, um homem cuja luta e ação moldaram a história do século XX português. E
uma miúda de 22 anos, por mais lata que tenha, não é de ferro. Imaginava-o
enorme, sério, distante. Na minha cabeça, ensaiava o que ia dizer, ensaiava a
naturalidade com que ia fazê-lo. E eis que ele aparece. Não enorme, não sério,
não distante. Afável. Estende-me a mão, sorri com aquele sorriso e trata-me por
tu. Acho que foi aí que ficámos amigos, apesar de só muito tempo depois
«oficializarmos» a coisa, no último diálogo do livro de conversas que
«escrevemos» juntos: «Não sou apenas amigo de camaradas do meu partido. Sou-o e
sou capaz de sê-lo de pessoas que têm opiniões muito críticas em relação a
conceções e posições do PCP e naturalmente às minhas. Tive ao longo da vida,
como uma das maiores riquezas, muitos e muitos amigos, a acompanhar-me, a
estimularem-me na luta e na vida. Continuo a tê-los. E também, na medida em que
vou conhecendo e conhecendo melhor pessoas que não havia conhecido passo a
estimá-las e vejo que posso ganhá-las como amigos e de vir a ser amigo delas.
De ti, por exemplo.» «Obrigada, igualmente».
Da segunda
vez que o Álvaro Cunhal telefonou para casa dos meus pais, fui eu que atendi. Tinha-lhe pedido
uma entrevista para a Notícias Magazine, onde entretanto estava a estagiar, e
que ele tinha recusado. Não queria dar entrevistas. Mas, «Catarina, estive a
pensar na tua proposta e se em vez de uma entrevista, fizéssemos uma série de
conversas? Se saírem bem, publicamos um livro.» Silêncio. Como aceitar? Como
recusar? Meses de preparação. Dezenas de encontros semanais na sala E da Soeiro
Pereira Gomes. Cerca de dezoito horas de conversas. E o livro saiu. Cinco
Conversas com Álvaro Cunhal. Era abril de 1999.
Recorrendo
ao prefácio que escrevi para a segunda edição, de setembro de 2013, percebo
agora que o tempo é a noção mais relativa, sinto que foi há uma eternidade e no
entanto ao lê-lo, volto lá e é como se tivesse sido há bocadinho e o Álvaro não
tivesse morrido e eu não tivesse crescido e nós estivéssemos no balcão do bar
da sede do PCP, ele a explicar-me divertido o que são peixinhos da horta. E
esse é o maior privilégio. Poder sempre voltar lá. Poder sempre ler estas
conversas e ouvi-las, adivinhar o que dissemos a seguir, ouvir-nos as vozes, a
dele e a minha, ora serenas, ora exaltadas, ora divertidas, mas sempre de boa
fé. Reconhecer nestas conversas, agora, 14 anos depois, a imensa generosidade e
paciência do Álvaro para as minhas perguntas provocadoras, para as minhas
dúvidas cheias de certezas, para as minhas opiniões, tantas vezes pueris.
Descobrir-lhes, nele, o gosto de ouvir, de discutir, de partilhar e até de
aprender; em mim, a capacidade de pensar, o atrevimento de perguntar, a vontade
de descobrir.
Falámos de
tudo, de história, de política, de ideias, de pessoas, do mundo, de livros, de
pintura, de comida, de amizade, de amor, de sexo, de ódio, de vingança, da
vida. E ao longo das conversas, não só pelo que diz, mas também pelo que não
diz e sobretudo pela forma como faz uma coisa e outra, Álvaro Cunhal dá-se a
conhecer melhor.
As conversas
continuaram. Ainda
guardo o desenho que me fez com o mapa para chegar a sua casa, nos Olivais,
assim como três dos muitos «desenhos das reuniões» que tinha guardados e que me
ofereceu, para responder à minha exuberante curiosidade sobre eles. Durante os
cinco anos seguintes visitei-o muitas vezes. Ao contrário da imagem pública que
dele se tem, era um homem muito atencioso e carinhoso. Fazia questão de abrir a
porta do elevador, à entrada e à saída e, com a convivência, o aperto de mão
foi substituído por dois beijinhos. De vez em quando um abraço, quando o
intervalo de tempo o pedia.
Da primeira
vez que entrei em sua casa, pespineta, pensei que o tinha apanhado. Os óleos na
parede assinados A. Cunhal [o Álvaro não assinou nem deu título a nenhum dos
seus desenhos a carvão ou pinturas a óleo]. «Afinal, assinaste alguns!». O riso
glorioso dele: «não, são do meu pai, Avelino Cunhal.». Já não me lembro do que
falávamos. Não costumo tomar notas das conversas que tenho com amigos. Da minha
vida, do meu trabalho, ele perguntava-me sempre se andava a fazer coisas
bonitas. Do que se passava no país. Dos livros que ele ainda estava a escrever
e de que me ia contando partes. De ciência, era um apaixonado por todas as
novas descobertas científicas. Mas também de filmes, de programas de televisão.
Nunca só de política. Até porque, como ele revelou, com graça, a certa altura no
nosso livro: «O convívio, que eu aprecio, não é só com caras sérias. É uma
sensaboria se as pessoas só sabem funcionar no sério. Trabalhei sempre muito,
estudei muito, a atividade política teve sempre uma grande intensidade, mas não
gostava que fosse só isso a vida. E, por isso, estar por exemplo a comer e a
falar de política, levantar e falar de política, ir para casa para junto dos
filhos falar de política, para a mulher falar de política, para a avó falar de
política, para o tio falar de política – não, isso não gostava nem gosto. A par
do trabalho político intenso, gosto de um convívio livre e descontraído sobre
as coisas simples da vida, do valor das pequenas coisas.» Era disso que
falávamos, de grandes e pequenas coisas. E muitas vezes era nas pequenas coisa
que se revelava. Lembro-me que depois de um presente de aniversário falhado, um
livro, que aceitou, mas não tinha condições de ler porque os olhos já não
permitiam, ofereci-lhe num Natal um pullover verde, que fez questão de trazer
vestido no encontro seguinte.
A última vez
que falámos foi uns meses antes da sua morte. Liguei a saber dele e quando
podia apresentar-lhe o meu filho João, nascido há pouco tempo. Lamentou não
estar em condições de nos receber. Perguntou por ele. Como era. Se se portava
bem. Despedimo-nos. Senti que não voltaria a vê-lo. No dia 13 de Junho de 2005
soube que não. Que não voltaria.
MEMÓRIA
Se Álvaro Cunhal fosse vivo, hoje almoçaria cozido à portuguesa com o seu amigo e camarada, o médico Ludgero Pinto Basto. Era isso que estava combinado. Quando fizessem cem anos, primeiro o Ludgero, quatro anos mais velho, depois o Álvaro, celebrariam juntos, à volta de um cozido. A morte, em 2005, com um mês de diferença, quebrou-lhes o compromisso.
Se Álvaro Cunhal fosse vivo, hoje almoçaria cozido à portuguesa com o seu amigo e camarada, o médico Ludgero Pinto Basto. Era isso que estava combinado. Quando fizessem cem anos, primeiro o Ludgero, quatro anos mais velho, depois o Álvaro, celebrariam juntos, à volta de um cozido. A morte, em 2005, com um mês de diferença, quebrou-lhes o compromisso.
Que bonita gente, Catarina (e tu também!)
ResponderEliminarTrabalhei com o Ludgero no Luso Fármaco.
Também quero ir a esse almoço!