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Edição Nº2070 - 1-8-2013
Comentário
A pergunta que nunca lhe fiz
Muitos, foram vítimas silenciosas da exploração e da
opressão, vítimas submissas por julgarem ser esse o seu destino. Alguns,
enfrentando corajosamente o medo, confrontaram a voz do poder com o poder da sua
voz, exigiram justiça e dignidade, ajudaram a construir a História dos dias de
hoje.
Poucos, tiveram força, determinação e abnegação
bastante para gastar a vida por inteiro numa luta incessante pelo quebrar das
grilhetas que tornam os homens menos livres.
Foi isso que fez deles homens diferentes, os tornou
grandes e justamente os inscreveu na História dos homens.
Percorro a exposição no pátio da Galé sobre o
centenário do nascimento de Álvaro Cunhal onde quase tudo me é bastante
familiar. Fomos companheiros de luta na clandestinidade e na Revolução, durante
décadas.
Detenho-me na reconstituição do que foi a sua cela na
Penitenciária de Lisboa. Espaço exíguo, onde por um ainda mais exíguo postigo
gradeado se escoa uma ténue luz. Pergunto a mim mesmo: Como se resiste,
incomunicável, durante sete longos anos? Por que se resiste?
À memória chegam-me as suas palavras numa entrevista,
após a fuga de Peniche: «Certamente é possível enlouquecer ao ter consciência de
que, adiante, nada mais existe, que te encontras preso e não podes fugir desses
ásperos muros, pó de cimento imóvel, fugir dos surdos passos do vigilante que
anda no corredor.»
Como se resiste, por que se resiste? O sótão das
memórias devolve-me agora os comentários feitos por comunistas espanhóis que com
ele se encontraram clandestinamente, na casa do Penedo em Sintra, no fim da 2.ª
Guerra Mundial: «A sua extrema magreza impressionava, as orelhas pareciam
transparentes. Vivia com imensas dificuldades, os comunistas portugueses tinham
muitas dificuldades financeiras.»
E vem-me à lembrança aquela pergunta que nunca lhe
fiz...
Conheci Álvaro Cunhal em Moscovo após a fuga de
Peniche. Não descobri nele vestígios por aquilo que seria uma compreensível
amargura por tantos anos privado de tudo. Pelo contrário, sempre lhe vi uma
natural e sincera afabilidade e uma profunda confiança na capacidade dos
trabalhadores e do povo português no derrube do hediondo regime fascista que tão
barbaramente o tinha tratado.
Mais tarde, quando trabalhava na Rádio Portugal Livre
em Bucareste, tive com ele contactos mais regulares. Cunhal era um homem de
convicções fortes, com uma determinação e firmeza inquebrantáveis, mas
paralelamente existia nele um profundo conhecimento e compreensão pela
complexidade e fragilidades da natureza humana. A sua visão arguta e abrangente
da realidade permitiram-lhe sempre o gizar de caminhos que se revelaram um
precioso e valioso contributo na vida do PCP.
Desde o primeiro dia em que o conheci que persistiu em
mim a tentação de lhe perguntar: Álvaro, por que te tornaste comunista? À
pergunta que nunca tive coragem de formular ele foi-me respondendo dia após dia,
todos os dias, com uma firmeza e uma convicção que estão muito para além de uma
opção ideológica. Só uma opção de vida e de generosidade as poderia
justificar.
Recentemente alguém ao referir-se a Álvaro Cunhal
afirmou: «o que torna os homens grandes não é o que fizeram por si ou para si,
mas o que fizeram pelos outros.»
Álvaro Cunhal ajudou a abrir a estrada por onde um dia
o sonho se tornará verdade, se fará real, por onde os homens libertos da sua
condição de escravos dos novos tempos, se tornarão mais homens, porque
livres.
Mais cedo do que tarde a História o
confirmará.
Por esse legado de profunda coerência e inteira
dedicação ao nosso colectivo partidário e ao povo português – obrigado Álvaro.
Obrigado, camarada.
Aurélio Santos
ainda hoje a pergunta queima os lábios: "Como se resiste, por que se resiste?"...
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