Extractos de uma espécie de diário:
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Num jornal desse dia, o Público, que por mero acaso me caiu nas
mãos, um título “agarrou-me”: Obrigado, dr. Cunhal!
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Sem me iludir, mas aberto a surpresas agradáveis que a comemoração do
centenário de Álvaro Cunhal tem proporcionado, li-o com interesse, até porque o
tema era Debate-Interrupção da gravidez, e a escrita escorrida e escorreita, como é próprio de quem faz da língua um veículo de argumentação e de
doutrinação.
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Pois o autor – o doutor Portocarrero de Almada (PdeA) – fez
do seu escrito uma verdadeira lição de farisaísmo.
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Se começa por se associar a “essa venturosa efeméride” do centenário
do nascimento do “mítico secretário-geral do Partido Comunista Português”,
o excurso bem nos deixa a dúvida sobre o que PdeA considera venturoso na
efeméride.
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Enuncia ele três motivos para justificar o que
diz ser “homenagem, que parece contradizer a minha condição de
sacerdote católico” e que, por o ser como é, exclui a contradição
dialéctica.
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Logo o prova ao enunciar o primeiro motivo – de ordem familiar! –, revelando um incontido azedume por Cunhal se referir, «em tom muito
depreciativo, a um meu avô, também jurista e autor de O crime do aborto,
obra contrária a todo e qualquer aborto, que já Santo Agostinho considerara “o
mais abominável crime”»
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Que PdeA, tal como seu avô e Santo Agostinho, assim pense não é de
estranhar e está no seu pleníssimo direito.
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Já não se pode aceitar que, ao referir o segundo motivo, sublinhando que
Cunhal afirma que “o aborto é um mal”, embrulhe essa
afirmação numa argumentação que pretende ignorar o carácter jurídico da tese de
Cunhal, que trata da descriminalização do aborto terapêutico e, sobretudo, ataca
as causas da existência do mal e procura prevenir os perigos da sua clandestinidade,
a que os estratos populacionais economicamente folgados se eximem pagando o
preço que for acordado e/ou onde ele esteja legalizado.
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O terceiro motivo é, diria, ridículo, pois PdeA considera que a
apresentação daquela tese – “não obstante o reduzido mérito científico do
trabalho”, como tão depreciativamente o etiqueta – desmente “uma certa
historiografia moderna (que) negaria liberdade de opinião e de expressão
nos meios universitários”, apesar de conceder o “inegável e censurável
carácter autoritário do antigo regime”.
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“Antigo regime”, a que idónea historiografia chama fascismo e que torturou
violentamente o “beneficiário dessa “liberdade de opinião”, lhe pôs em vida em
perigo várias vezes - como camaradas seus não resistiram -, o encarcerou (8 anos em isolamento)
de que só se libertou em fuga colectiva heróica.
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Mas se o “Obrigado, dr. Cunhal!” ilustra a hipocrisia de todo o
texto, justifica-se que, a título pessoal, agradeça a PdeA o ter-me obrigado a
procurar a referência ao seu avô feita por Álvaro Cunhal, e assim ter-me levado a reler o
trabalho em que este terá sido depreciativo para o seu antepassado.
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É que, segundo Cunhal no seu trabalho, há quem fale «com notável impudência de assuntos
de que mostra ignorância: “Nem no caso da prenhez ser consequência de violação sobre
(sic!) mulheres idiotas, admitimos que seja
provocado o aborto, visto que, sendo ainda muito obscuras as leis da
hereditariedade, o que há a fazer, como nos outros casos de violações, é
confiar-se a criança aos cuidados do Estado”» (O crime do aborto,
Dr. Mendes Correia, Lisboa, 1935, pg.127)
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Mas, sendo essa uma posição ideológica, vai mais longe, reclamando que se “recuse o direito de dar vida a
alienados, a epilépticos, a degenerados, a criminosos, a vagabundos, a
estropiados físicos e psíquicos, a mendigos profissionais, a alcoólicos, a sifilíticos.”
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Sem aborto, terapêutico e em quaisquer circunstâncias, e a caminho da raça
pura, em que se incluiria, evidentemente, a castração como pena para alguns crimes
ou situações!
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