- Domingos Lobo
Cunhal/Cem anos/100 palavras
– Tecer, com a seiva das palavras, a ilha da utopia
Nunca vi um alentejano cantar sozinho, escrevia deslumbrado esse poeta dos racionais afectos e da reinvenção dos sentidos das palavras, da metáfora exultante que foi José Gomes Ferreira. Ou o Raul de Carvalho, que não falava sozinho quando nos dizia da sua Vila de Alvito, onde foi criado e dos senhores que a oprimiam; dos medos e sobressaltos do Alentejo profundo, dorido e resistente que o Manuel da Fonseca inscreveu em Cerromaior, Aldeia Nova e nesse incontornável romance que é Seara de Vento; o Ribatejo de Gaibéus e Rabezanos, de Redol, ou dos homens que não foram meninos, de Soeiro. Até esse romance modelar da nossa revolução, inaugural de uma obra maior,Levantado do Chão, cujo guindaria o seu autor ao Nobel da Literatura, é feito de muitas e sofridas vozes; vozes ao alto, convocando-nos para uma colectiva forma de estar no mundo e resolver, unidos como os dedos da mão, os problemas que nos são comuns.
Há escritores que transportam aos ombros – muito para além da argamassa das memórias da vida e do vivido com que estruturam os textos – o peso do social que transparece acutilante na sua escrita, uma escrita comprometida com a história e com o pulsar do seu tempo: uma literatura sem sofismas. Mesmo quando o autor, pelo rigor e mestria do seu laboratório oficinal, consegue elidir essa particularidade, ela está impressa no texto, é indissociável do estilo, do diegético que atravessa essa obra. A obra ficcional de Álvaro Cunhal/Manuel Tiago tem essa profunda marca, transporta esse imperecível testemunho.
Assim o entenderam, e pluralmente o escreveram, os autores deste livro inesperado, arguto e sensível: Cunhal/Cem Anos/100 Palavras, que a Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto, associando-se à Comemorações do Centenário de Álvaro Cunhal, acaba de publicar. Encontramos essa marca, essa pulsão narrativa neste livro, a vários títulos notável, de várias vozes conjugadas num propósito comum: o de homenagear, pelo rigor das palavras, o grande vulto da cultura, da política, do pensamento e da resistência que foi Álvaro Cunhal. Os autores têm, da singularidade desse percurso, perfeito conhecimento e nos cem textos que fazem este raro objecto de palavras modelares dizem-no alto e sem tolhimentos: há razões sociais, políticas e históricas que atravessam os comportamentos, que inoculam os vazios, a solidão, o desencanto, a desesperança, a usura – uma espécie de húmus que subterraneamente nos contamina e invade o espaço colectivo e a imperecível memória dos dias, e nos impele a construir os linimentos da Utopia através de um rosto, dos fragmentos de um rosto tecido de palavras, que na diversidade dos olhares sabemos, na serenidade dos íntimos rumores, ser familiar, próximo e tangível. Este livro atravessa esse universo das palavras que, no profundo significado que as envolve, na sua volátil dispersão, junta vozes inesperadas num propósito comum: dar forma a um rosto, procurá-lo por entre a bruma, nos fragmentos que se perderam na memória dos dias, entre o mito e a realidade, e construir o homem, o artista, o resistente, o intelectual e torná-lo próximo, tocável, matéria vibrátil da nossa contínua inquietação – para que o sonho se não perca.
Que fazer da coragem e da dignidade, do exemplo, esse sensitivo baú evanescente das nossas percepções interditas, quando perplexos nos perdemos no caos da ignomínia dos dias azedos, quando esses valores se agitam e nos convocam? Que fazer desse cadinho de nós que, apesar dos pesares e da vertigem que nos tentam impor com absoluta verdade, nos mantém atentos ao seu pulsar, que permanentemente nos acossa e traz à ilharga a porosidade mais extensa das emoções, do humano animal que nos habita?
Passamos pela vida impunemente, o nosso olhar sobre o outro, com o outro, é um verbo de passagem, estação sem contornos, sem retornos; signos esparsos no tempo? A contagem dos dias, o seu reflexo, são imanências, baços linimentos, vento apenas sobre um rosto nu? Ou, ao contrário, os outros contam, estão connosco na forma como nos habitam, nos modos como deixamos que se insinuem, se instalem nessa outra pele que é a um tempo estranha mas que sabemos, na memória que arrastamos, ser também a nossa, ou dela parte integrante. Só no outro, com o outro, nos reclamamos, nos sabemos inteiros – eis Adorno a ler-nos as linhas voláteis do destino que dia a dia escavamos com os nossos próprios ossos, sangue e lava – que sabemos nós desses signos, desses subjectivos, metafísicos «umbrais dos afectos»?
Este Cunhal/Cem Anos/100 Palavras, traz na capa (o arranjo gráfico, apesar de sóbrio, é magnífico) um expressivo desenho de Álvaro Siza Vieira. O primeiro dos 100 autores é Álvaro Cunhal, do qual é transcrita uma carta escrita na Penitenciária de Lisboa, a 23 de Agosto de 1951, em resposta a missivas da família. Através de uma linguagem cifrada e metafórica (os carcereiros vigiavam), o autor deEstrela de Seis Pontas, vai explanando algumas ideias sobre a agricultura em terras do Minho. Trata-se de um documento que nos dá a ver, numa linguagem informal e intimista, o homem sensível mas atento às condições de vida e de trabalho do povo minhoto, esse lado menos visível dos «bilhetes postais».
Livro feito de vocábulos e da sua transfiguração: Pide, Abril, Linho, Grândola, Muro, Pátria, Utopia, Festa, Sorriso, Marx, Alentejo, Tipografia, Cela, Juventude, Cravo, Madrugada, Camponês, Unidade, Outubro, Clandestino, Trabalho, Árvore, Igual, Liberdade. Palavras à procura de um rosto, que estruturam os textos que compõem este livro, 100 palavras escolhidas como frutos, para que o puzzle se construa e nele o homem/Álvaro Cunhal se erga inteiro, na justa dimensão do que foi e representou para os seus contemporâneos.
Livro feito de frases lapidares, que ficarão para a memória dos dias: «Acreditaste num homem impossível mesmo sabendo que era impossível» (António Freitas de Sousa); «A razón luminosa, combustiva, ilimitada: eis Álvaro Cunhal» (X.L. Méndez Ferrín); «Com esse punho, esse teu punho, lúcido, digno. Determinado» (Augusto Baptista); «A partir daqui, o fruto, a palavra, Álvaro, aproximam-se» (Francisco Duarte Mangas); «Álvaro Cunhal cinzelou como poucos a inquietação que cabe à esquerda» (José Reis); «Álvaro Cunhal destacava sobretudo a capacidade transformadora da acção das massas» (Vítor Ranita); «Não vai faltar sonho para continuar. Não vai faltar quem se entregue a sonhá-lo» (José Luís Borges Coelho).
Este Cunhal/Cem Anos/100 Palavras é uma justa, sensível homenagem que os homens de palavra(s) decidirem prestar a Álvaro Cunhal. Não vão faltar razões para lermos este livro. Cem, mil razões para tecermos com a seiva das palavras (as deste livro, de outros que aí estão e permanecem incontornável património colectivo; de outros que virão) o país possível e urgente.
avante! de hoje
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