Aljube, Lisboa: Homens
fechados em gavetas
Alexandra
Prado Coelho (Texto) e Mónica Cid (Ilustração) Público 13/9/2015
O telefone ainda toca no corredor
das celas de isolamento da prisão do Aljube, pela qual passaram milhares de
presos políticos durante o Estado Novo.
Avanço
sozinha pelo corredor silencioso e, de repente, o coração salta-me no peito. Um
telefone pendurado na parede começou a tocar. Olho em redor. Não há ninguém. É
um toque roufenho, meio abafado, um som vindo de outros tempos, quando os
telefones tocavam assim. Vejo uma pequena mesa de madeira com um tampo de vidro
debaixo do qual está uma página de um velho jornal desportivo, boletins antigos
do totobola e fichas de registos. Encostada à mesa, uma cadeira.
Dou mais um
passo. Estou em frente a um corredor. À direita, as janelas dão para o edifício
da Sé de Lisboa, do outro lado da rua. À esquerda, uma sucessão de portas
cinzentas. Esta é a réplica do corredor dos curros — as celas de isolamento —
da antiga prisão do Aljube, pela qual passaram milhares de presos políticos no
período do Estado Novo. A mesa de madeira é a do guarda e o telefone é igual ao
que tocava para avisar que um prisioneiro ia ser levado para as sessões de
interrogatório e tortura, que aconteciam normalmente na sede da PIDE, a polícia
política do Estado Novo, na Rua António Maria Cardoso.
Aproximo-me
da primeira porta, que está entreaberta. Tenho novo sobressalto. Depois de um
espaço pequeno, uma espécie de hall estreito, há uma segunda porta, e
atrás dessa, de cabeça encostada às grades, está a figura de um homem. No
segundo curro, um ecrã transmite um excerto de uma entrevista a Álvaro Cunhal
na qual o dirigente comunista recorda o que eram as condições de detenção no
Aljube e como se resistia, ou não, a estas células de isolamento e à tortura.
Terceira
porta, uma cela vazia. Paredes nuas, tecto alto e mais nada. Na quarta cela há
um catre, onde o preso se deitava ou sentava — eram catres basculantes, seguros
à parede por dobradiças e que quando estavam para baixo não deixavam mais do
que 15 centímetros até à parede oposta. Nestes espaços, também conhecidos como
“gavetas”, cabe apenas um homem deitado. Aí passavam os dias, numa
semi-obscuridade ou numa total escuridão se os guardas decidiam fechar o
postigo de 15 por 20 centímetros através do qual entrava algum ar e (pouca)
luz. Para ir à casa-de-banho era preciso chamar o guarda e esperar que este se
dispusesse a acompanhar o preso — ficando sempre a porta aberta.
“Uma
angustiosa sensação de asfixia e desespero” — foi assim que Arlindo Vicente,
antigo candidato à Presidência pela Oposição Democrática, descreveu o que se
sentia sentado na escuridão de uma destas “gavetas”, onde o preso não podia ter
nada. As horas passavam desesperantemente iguais e escuras, sem um papel e um
lápis ou um livro. Silêncio, escuridão, isolamento, quatro paredes, um metro
por dois de espaço vital, com sorte dois passos para cada lado se o catre
estivesse levantado — restavam apenas as estratégias que cada um inventava para
ir aguentando, um dia de cada vez.
E, no meio
disto, de vez em quando, a campainha rouca do telefone na parede a chamar o
próximo. Podemos tentar imaginar. O toque a ecoar em cada cela, o baque e o
frio na barriga, o som da cadeira de madeira do guarda a arrastar no chão de
pedra enquanto ele se levantava para atender.
Num cartaz
ao lado do telefone, há uma descrição desse momento: “O carcereiro levantava-se
e, ao percorrer o corredor, fazia tilintar o enorme molho de chaves que trazia
à cintura ou na mão, abria e fechava postigos, muitas vezes repetindo esse
percurso até se deter numa cela e anunciar, depois de escancarar a porta de
madeira, ‘prepare-se para ir à polícia!’”.
O Aljube,
nome que vem do tempo dos muçulmanos, tem uma história antiga, muito anterior
ao Estado Novo, mas funcionou sempre como prisão, primeiro para presos do foro
eclesiástico (até 1820), depois para mulheres acusadas de delitos comuns (até
1920) e finalmente para presos políticos do Estado Novo (de 1928 até 1965).
Quando, no Verão de 1965, o Aljube encerrou — na sequência de muitos protestos
e da constatação da própria PIDE de que a prisão não tinha condições de
segurança e higiene — o andar dos curros foi totalmente destruído.
Hoje está
instalado no Aljube o Museu da Resistência e Liberdade, que inaugurou a 25 de
Abril deste ano.
E, para que
nunca mais ninguém esqueça ou possa dizer que não sabia, o velho telefone rouco
pendurado na parede continua a tocar.
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