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Edição Nº2052 - 28-3-2013
Do Vietname, com amor,
para Álvaro Cunhal
As quartas de manhã, nos idos
do dealbar de 1976, eram o pedaço mais desejado da semana para um grupo de
jornalistas empenhados em escrever, nem sempre bem, nem sempre conseguindo esse
desiderato, «a verdade a que temos direito». Não era, nessas alturas, preciso
arranjar desculpas para o atraso ao encontro, nada de o trânsito estar de
morrer, o metro, nem imaginam, o autocarro atrasou-se, o despertador,
vejam lá, deu-lhe para não tocar. Chegávamos todos a tempo e horas, enchíamos a
sala com a nossa vontade de ouvir e de aprender, muitos de nós licenciados,
experts em coisas várias, diplomados em filologias, histórias e
economias. E depois chegava o Álvaro, sorriso encorajador, uns papéis ou um
bloco-notas debaixo do braço, um cumprimento às vezes afável, às vezes
contundente, às vezes enrugado, consoante os ventos que sopravam contra ou a
favor dos que, honesta e fraternalmente, queríamos que
soprassem.
As quartas feiras de manhã
eram o contacto com a experiência, a humanidade, a força inabalável, a
inflexibilidade e a ternura do Secretário-geral do Partido Comunista Português,
ali sentado connosco, a ouvir-nos preocupações e sonhos, a sugerir-nos caminhos
e atitudes, a saber de cada um de nós, dos nossos problemas, das nossas vidas, a
contar-nos pouco da sua intimidade e muito do seu sonho acordado, da sua
inabalável confiança nos operários da terra ou da fábrica, da tela ou dos
livros, da vida e do futuro. Era um de nós sendo o que todos nós queríamos vir a
ser, não líderes ou dirigentes de um colectivo incomparável, mas homens e
mulheres tão íntegros, empenhados, seguros, revolucionários e confiantes como
ele porque, com ele, com o seu exemplo, com as suas palavras, ficaríamos
envergonhados de ser menos do que aquilo que nos propunha que fossemos e que
desejávamos ou passávamos a desejar ser.
Pelo meio destes afazeres
andava eu às voltas com as cantigas e calhou, integrado no grupo «Introito» e
tendo como parceiro o Samuel, dar uma saltada a Dusseldorf para participar numa
festa do DKP (Partido Comunista Alemão na, então, Alemanha Ocidental). Cantigas
em palcos de solidariedade, conversas impensáveis com Hartmut Friekenbrink,
nosso guia e militante do DKP que falava um português correctíssimo e, depois,
já no poente da festa, uma visita de despedida arredondada ao recinto dela, na
bebericagem de uns scnhapps de variados e gulosos sabores em stands que
representavam vários movimentos e partidos progressistas do mundo e que, por
honra à casa que os hospedava e ao bom gosto dos seus frequentadores, dispunham
da apetecível bebida.
Vai daí, estávamos nós na
prática do desporto líquido (como diria na altura o Baptistas-Bastos), eis que
nos surge um grupo de caras risonhas e afáveis, mostrando nos seus traços sua
origem asiática. Dirigiram-se a nós e quiseram confirmar se éramos portugueses.
Perante a nossa resposta afirmativa alargaram os sorrisos e um deles
estendeu-nos um ramo de cravos vermelhos. Disse-nos: para dar a Álvaro
Cunhal.
Abraços, algumas lágrimas,
sorrisos redondos, saúdes, e eu a olhar para um ramo de cravos vermelhos que um
grupo de vietnamitas me depositara nos braços e com a responsabilidade de o
entregar, com indicação de remetente, a Álvaro Cunhal.
No dia seguinte entrei pela
António Serpa e entreguei a quem devia os cravos e a estória deles. Ainda
estavam viçosos.
Acho que ainda hoje estão
viçosos.
Nuno Gomes dos Santos
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Ora aqui está um texto "à medida" deste "blog". A uma das suas muitas "medidas"... tal como o desejámos e vamos cumprindo. Como tantas outras mensagens já aqui colocadas.
Obrigados, Nuno!
S.R.
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