Cose a camisola
António
Borges Coelho*
Nos
meados de Junho de 1957 entraram na Fortaleza de Peniche os dirigentes do MUD
Juvenil condenados no dia 12 pelo Tribunal Plenário do Porto: Ângelo Veloso,
Pedro Ramos de Almeida, Hernâni Silva, e eu próprio. A carrinha da Pide entrou
na parada da Fortaleza. Quando abriram as portas, o Ângelo desatou a correr
pela rampa acima:
-
Ó Coelho, olha como é belo! - Apontaram-lhe as metralhadoras.
Subimos
então a rampa para o pavilhão C, o da máxima segurança, que dominava o porto e
o Largo onde as mulheres de sete saias cosiam as redes e jogavam a pela.
O
Ângelo entrou na primeira cela para ver como era. O guarda fechou com violência
as duas portas e correu a chave. O Ângelo tocou. O guarda abriu: - O que é que
quer? - E atirou outra vez com brutalidade as portas. Verificamos a seguir que
não tinham outra forma de fechar.
Pelas
cinco horas, tocou o apito e abriram as celas. Olhamos para o corredor e vimos
aproximar-se Álvaro Cunhal. Sorria e estendeu a mão a cada um de nós. – Boa
tarde, camaradas! - Era uma aparição. Muito jovem nos seus quarenta e três
anos. Os cabelos Brancos que despontavam acrescentavam-lhe a auréola. Seguia-o
o Rogério de Carvalho, um companheiro humaníssimo, mas o Álvaro dominava
inteiramente a cena.
A
foto de Cunhal, a preto e branco, passava na imprensa clandestina. O rosto
jovem, anguloso e austero, olhava para nós com uma impressionante força
interior. Circulavam narrativas. Falava-se do espancamento brutal a que fora
sujeito, do seu papel na organização do Partido. Líamos copiografadas as suas
palavras no Tribunal Plenário. Os oito anos de isolamento na Penitenciária de
Lisboa douravam-lhe a aura. Alguns de nós tinham lido o seu relatório ao III
Congresso Ilegal do PCP e o opúsculo “Se fores Preso, camarada”. Havia ainda o
poema “A Lâmpada Marinha” que Pablo Neruda lhe dedicara, a ele, e a Militão
Bessa Ribeiro. Eu próprio, em liberdade, escrevi-lhe um poema. Mostrei-lho
meses depois deste nosso encontro. - Não tens outro tema mais interessante? -
Depois
do XX Congresso e do relatório de Krutchev, o culto da personalidade não era
politicamente correto. A reação desfavorável de Cunhal foi genuína. Destruí o
poema.
Este
encontro ocorrera porque todos os dias às cinco horas, desde que não estivessem
de castigo, os presos tinham uma hora de convívio no refeitório. Deixavam-nos
ler, jogar xadrez, escrever à família, mas conversa só por intermédio do
guarda: - Ó senhor guarda, posso perguntar…
“Pode”.
“Não
pode falar em política!”
Álvaro
Cunhal, como qualquer de nós, viveu aqueles dias sempre iguais. Às sete horas
tocava o apito. Levantar, lavar, despejar o balde, regresso às celas. Os
presos, a quem, por escala, cabiam as limpezas do dia, varriam o corredor,
arranjavam o quarto de banho, lavavam a loiça e, acompanhados pelo guarda, com
o mar a soprar pelas furnas, lançavam o lixo do alto das muralhas.
Ao
meio-dia e ao fim da tarde, desciam a rampa em direção à cozinha onde presos
comuns confecionavam o almoço e o jantar. Comíamos no refeitório em silêncio. Chicharro
cosido ao almoço, chicharro frito ao jantar. Se atirássemos o arroz à parede,
ficaria colado como argamassa.
Depois
do almoço, quando não estávamos de castigo ou não chovia, era o recreio, uma
hora ao ar livre no pequeno largo travado pela muralha. Para a frente, volta,
para trás. A voz estava treinada para chegar ao ouvido do vizinho. Cunhal era o
alvo principal dos presos e dos guardas. O guarda do turno andava no meio:
-
Fale mais alto que eu também quero ouvir!
No
recreio as conversas andavam à volta da situação política, mais animadas se
chegavam mensagens clandestinas. E discutíamos literatura e pintura, os
clássicos e os modernos, trocávamos ideias sobre economia política e filosofia.
Nas
celas os nossos passos ficavam marcados na humidade do chão. Não havia cadeira
nem mesa, só a cama onde não nos podíamos sentar e muito menos escrever.
Escrevíamos, sentávamo-nos. Vivíamos em transgressão permanente.
Fechados
quase todo o dia e a noite, sem mesa e sem cadeira, por vezes em condições
psicológicas extremamente penosas, estudávamos. Mas faltavam os materiais de
base. Para receber um livro, o preso tinha de devolver o que tinha entrado.
“Não são permitidas bibliotecas”. E sempre o olho do guarda a controlar os
nossos movimentos pelo ralo. Aproveitando a nossa ausência no refeitório ou no
trabalho de limpeza, o Bolas passava revista aos papéis e ia mostrá-los ao
chefe.
Nestas
condições, o trabalho, realizado por Álvaro Cunhal na prisão, foi
impressionante. Na Penitenciária traduziu o “Rei Lear” e trouxe de lá, já
elaborado, o ensaio “As lutas de Classes em Portugal nos fins da Idade Média”. Na
Fortaleza escreveu “A Arte, o Artista e a Sociedade”, possivelmente ainda com
outro título, um outro ensaio sobre a literatura portuguesa dos anos quarenta-cinquenta,
a novela “Cinco Dias e Cinco Noites” e “A Mulher do Lenço Preto” que receberia
o título final de “Até amanhã, camaradas”. Todos estes manuscritos, menos “A
Mulher do Lenço Preto”, viajaram para a minha cela debaixo das camisolas, uma
delas, rota no cotovelo.
-
Cose a camisola!
Eu
fazia ouvidos de mercador. Insistiu que lha desse para a coser. E coseu.
Na
Penitenciária e na Fortaleza, Álvaro Cunhal desenhou a carvão o povo operário e
camponês, os pescadores e as mulheres de Peniche no jogo da pela, as
assembleias do povo em
luta. Tinha obtido uma autorização especial que lhe permitia
receber livros de arte. Ao pavilhão C chegaram álbuns de Velasquez, El Grego,
Bruegel o Velho, Goya, Delacroix, Van Gogh. “O Filho Pródigo”, “Las Meninas” ou
“A Velha Fritando Ovos”, “Os Céus de Toledo”, “As Seara e os Corvos”, de Van
Gogh, ou o “Saturno”, de Goya,
iluminaram clandestinamente o branco das nossas paredes.
As
janelas gradeadas das celas eram altas e em guilhotina. A vista
para o exterior ficava cortada. Pedi ao meu pai uns socos que me permitiram
chegar com os olhos à frincha e ver as ondas do mar a bater no Baleal ao fundo.
O Álvaro ficava na segunda cela virada para o porto, o Rogério de Carvalho na
cela do lado, depois ocupada pelo Carlos Costa.
É
quase impossível inserir acontecimentos nos quase dois anos e meio que vivemos
na Fortaleza de Peniche. Os dias corriam iguais, alterados pela saída de
camaradas ou a chegada de uma nova fornada. Perdemos a luta contra a construção
do parlatório. Blindado por um vidro espesso, impedia qualquer contacto entre o
preso e o familiar e obrigavam-nos a falar muito alto com guardas dum lado e do
outro lado. Mas ganhamos outras pequenas batalhas.
O
enfermeiro da prisão descobriu o que os médicos não tinham descoberto. Cunhal
tinha de ser operado a uma fístula provocada, ainda em liberdade, pelas longas
viagens de bicicleta. As greves de 1943, de 1944 e 1947 tinham alargado a
influência do Partido clandestino no meio operário, em muitos sectores da
população camponesa, na pequena burguesia e também entre os intelectuais. A
bicicleta ficou como símbolo da entrega revolucionária. Ela ligava o Partido ao
País dos humilhados e dos ofendidos.
Quando
levaram o Álvaro para ser operado, a Fortaleza ficou mais vazia. Faltava a sua palavra,
a alegria contagiante e diária, mesmo nos momentos mais difíceis, a sua fé.
Peso da palavra.
Nada
nem ninguém consegue travar um preso, mesmo mergulhado numa cela ou num buraco,
aparentemente com o nada como destino. Há sempre qualquer falha que escapa ao
carcereiro.
Álvaro
Cunhal, Jaime Serra e mais oito companheiros fugiram da Fortaleza de Peniche no
princípio da noite de 3 de Janeiro de 1960. Salazar tremeu.
Dessa
noite ficou-me nos ouvidos o grito:
- Ó
da guarda, fugiram os presos!
Ficou
também o ruído das botas da ronda que vinha render a guarda e os disparos sem
nexo e intermináveis das metralhadoras. O guarda prisional chorava. Toda a
noite, o abrir e fechar das celas, o cheirar dos cães e na parada as portas dos
carros a bater.
Uma
tarde, durante a lavagem da louça, falei ao Álvaro na prática socrática e
cartesiana da dúvida para atingir a verdade. Não a punha em causa, mas
respondeu-me que as dúvidas não o atormentavam, querendo significar que não
alteravam o caminho que traçara.
A
queda do muro de Berlim e o colapso da União Soviética feriram-no
profundamente, mas não destruíram a sua confiança nas promessas da história e
da teoria.
Nos
últimos anos, meio cego, compararam-no ao rei Lear, mas a mente continuava
ágil. Não saía. Queria preservar a imagem e a dignidade. Ele sabia que era
símbolo, quase mítico, de décadas de luta e de sacrifício.
*Historiador
(publicado na revista Seara Nova, nº1723,
Obrigado, Ana Goulart)
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